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Sweet Sixty

imagem:net
Dona Ana vivia num mundo criado só por ela. Vestia roupas dos anos 60, como se ainda vivesse nesse tempo e tivesse 20 anos.
Ignorava a passagem da idade e vivia presa a esses momentos em que foi extremamente feliz.
Na rua era olhada pelos vizinhos com a estranheza típica dos portugueses, demasiadamente atentos aos outros e muito agarrados às tendências da moda.
O seu marido nada dizia. Passava algumas tardes a jogar às cartas, no jardim e o resto do tempo a passear com a esposa ou em casa.
-A tua mulher veste-se como vivesse no passado! – Comentava um amigo.
-Oh, deixa a estar!
E os dias iam passando. Sempre que era preciso ir às compras ou passear iam sempre juntos. Eram um casal muito unido.
Certo dia, passeando de mão dada pelas ruas do Chiado:
-Desculpe minha senhora! – Interpelou-a uma rapariga nova.
-Sim!
-Sem querer ser intrometida mas, não pude deixar de reparar na maneira peculiar que se veste.
-São roupas muito antigas que alterei ou fiz para mim.
-Veste peças muito originais. Eu tenho uma loja aonde vendo roupa do género. Quer ver?
-Gostaria muito.
Seguiram em direcção à Rua do Norte e entraram numa lojinha das muitas que existem no Bairro Alto.
Os olhos de Dona Ana, brilharam e ficaram cheios de lágrimas.
-Não gosta? São muito feias? Porque está tão comovida?
Dona Ana saiu da loja e sentou-se num degrau à porta.
-Desculpe a minha esposa. Sabe, nós na década de 60, também tínhamos uma loja do género. A Ana adorava fazer roupa. A nossa filha passava os dias a brincar com os botões e restos de tecido.
-Vendou a loja?
-Sim, tivemos que o fazer depois do desaparecimento da nossa pequena Maria.
-Ohh os meus pêsames!
-Não morreu. Desapareceu. Um dia Ana, saiu uns minutos da loja para ir entregar uma peça numa casa aqui muito perto. Quando chegou Maria havia desaparecido.
-Que idade tinha?
-Cinco anos.
-Sabe, a minha mãe faleceu quando eu tinha sete anos. Também era costureira.
-Lamento muito! Obrigada pelo convite mas nós temos que ir embora.
-Espere! Tome o meu cartão! Se um dia a sua esposa quiser mostrar-me algumas das roupas que criou ligue-me.
Saiu da loja, pegou na mão de sua esposa e foram para casa. Fizeram o caminho de regresso sem trocarem uma única palavra. Era como se o silêncio que haviam decidido deixar no passado voltasse a penetrar nas suas veias.
Nessa noite, enquanto viam a novela:
-João!
-Sim, meu amor!
-Aquela loja aonde fomos hoje…
-Sim, muito parecida com a nossa!
-Gostaria de lá voltar e levar umas peças minhas.
-Não sei se te faria bem, voltar a recordar…
-Tenho que deixar a Maria ir, João! Ela não vai voltar e nós continuamos a viver como se ela estivesse entre nós. Tenho que continuar o meu sonho, nem que seja por breves momentos.
João, abriu a carteira, tirou de lá o cartão da loja e ligou para o número de telemóvel que nele estava escrito.
No dia seguinte, à hora de abertura da loja, Dona Ana, estava à porta, sozinha, com um alcofa de verga forrada a trapiho, cheia de roupa.
-Bom dia, minha senhora!
-Bom dia!
Com ar apreensivo retirou as suas peças e espalhou-as pelo balcão.
-Bonjour! Essa peça que ter ai quanto custa? – Exclamou um turista francês que nessa altura passeava pela loja.
Dona Ana nem teve tempo de dizer nada e a rapariga do balcão sorriu.
Decidiu deixar as peças e não quis nada em troca. Respirou fundo e saiu da loja com um brilho nos olhos.
Seguiu em direcção aos Armazéns do Chiado e comprou roupa nova com as suas economias. Saiu das lojas já vestida de novo.
Quando chegou a casa, João estava sentado a ver o Estoril Open na Tv. Assim que viu Dona Ana, apressou-se a chegar perto dela e abraçou-a com força. Foi uma despedida de um passado e uma abertura a um presente que tentavam, à muito, fugir.

Comentários

Este comentário foi removido pelo autor.
Sandra disse…
BELO TEXTO.
PARABÉNS.

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