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A memória das palavras

Num sótão, estava uma carta esquecida, empoeirada, em cima de uma mesa. Ao seu lado, menos marcado pelo tempo, mas já com algum sinal de abandono, encontrava-se largado um post-it. Ambos tinham mensagens escritas.
-Largados neste sótão, pintados pelo tempo, perfumados pelo abandono e esquecidos pelas lembranças de alguém. Este é nosso destino! – Lamuriava-se a carta.
-Deitar fora, quando possível! – Dizia o post-it.
-Se quem nos escreveu fora não quis deitar é porque para sempre nos quis lembrar!
-Deitar fora, quando possível! – Repetia o post-it!
-Lembrete de cor amarela, de curta mensagem escrita! Porque repetes sempre essa barbaridade? Não sabes que a escrita eterna? As palavras traçadas num papel revelam sempre mais acerca de quem escreve. É mais fácil exprimir o que se sente através das letras. Ninguém seria capaz de deitar fora o que, algum dia foi o seu sentir mais profundo.
-Deitar fora, quando possível! – Repetia o post-it!
-Não consegues dizer mais que isso? Pobres são os que apenas conseguem exprimir o que sentem num pedaço de papel amarelo.
Começaram-se a ouvir passos nas escadas e a porta abriu-se. Um senhor idoso entrou e dirigiu-se à mesa aonde se encontrava imensa papelada, entre as quais a carta. Pegou nos papéis, reparou no post-it junto a eles e deitou tudo no saco de plástico que trazia consigo.
Desceu a escada.
-Deitar fora, quando possível! – Gritava o post-it agora com uma voz trémula, temendo pelo seu fim.
Já na cozinha, o idoso, preparava-se para juntar os papéis com o resto para reciclar, quando a carta cai no chão. Ainda se encontrava fechada. Olhou para o remetente e ficou parado, estático. Trémulo, abriu a carta e começou a ler. As lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto envelhecido. Dobrou novamente o manuscrito e guardou-o no bolso da sua camisa, junto ao coração.
Agarrou no resto do lixo e levou para o contentor azul do fundo da rua. A caminho do ponto de reciclagem, de dentro do saco, uma voz, esmorecida, triste, quase inaudível:
-Deitar fora, quando possível! – Suspirava o pequeno papel amarelo, quase sem vida.

Comentários

Anne Lieri disse…
É mesmo muito triste desfazer-se das palavras escritas!Lindo e comovente conto!Bjs,

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