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Conversas de chapéu

Já fazia parte de mim. Era como um órgão do meu próprio corpo. Não era um acessório como muitos, mas sim um inseparável amigo. As memórias da sua ausência já se haviam desvanecido. Deveria ser muito pequeno para o poder ter.
Não saía de casa sem ele. Protegia-me do Sol e escondia-me do frio. Sem ele não era eu. Agora fechado em casa, admiro-o pendurado no bengaleiro. Converso com ele e imagino as suas respostas.
Os dias passam entre a cama e o sofá. Ouço as vozes que saem deste novo aparelho que comprei há muitos anos. Conversas que me fazem sentir que, algures, lá fora o tempo passa. As novidades da minha vida já desapareceram. Agora é só deixar o tempo passar, à espera que esse mesmo tempo deixe de me visitar.
Ouvi dizer que estas vozes que saem da caixinha vão ser caladas e é preciso comprar algo ou mudar de aparelho. Não percebo muito bem mas sei que não tenho dinheiro para o fazer.
Velho amigo, vamos ficar em silêncio! Vamos voltar a ser só nós dois, como o fizemos durante 60 anos, no meio das montanhas. Tens saudades do som da água a correr, dos pássaros a cantar e do vento a soprar por entre os ramos, não é? Sabes que ainda os ouço quando fecho os olhos à noite. Nunca mais os ouviste? Tens que imaginar e recordar amigo. A imaginação e as recordações são os impulsos que ainda fazem bater o meu velho coração.
Perguntas se o tempo vai continuar a correr lá fora. Claro que vai. A crise, os acidentes, os roubos, os programas com histórias de vida que antigamente acompanhava-mos através de conversas, aos Domingos, no adro da Igreja.
Nunca gostaste das missas pois não? Eu sei. Preferias as conversas, as notícias do nosso mundo. Seriam menos importantes do que as da caixa. Não creio. Eram pedaços de vida de pessoas com quem nos cruzávamos todos os dias. Se calhar também eram nossas.
Queres saber o que fazes amanhã quando a caixa se calar. Temos que recorrer à imaginação para continuar a viver amigo.
Como a chamas? Vives e revives as recordações, vezes e vezes sem conta. Cada vez que as revives nunca te parecem iguais. Será imaginação, será memória? Não sabemos mas que precisamos delas para viver, precisamos.

Comentários

Paula noguerra disse…
Porque já se dizia: "recordar é viver"!
LINDO :-)
Obrigado Paula

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