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Charles, o "bacano"

Chovia lá fora. Um estado de tempo anormal para a época mas muito bem-vindo devido anterior sedento Inverno.
Não se esperavam muitos clientes. Nos dias de semana apenas as donas de casa e os idosos visitavam a praça.
Na aparelhagem tocava um dos cd´s do costume. O Elvis Presley, seu ídolo inquestionável. Era um estranho som naquela praça. A música popular era mais comum. No entanto, naquele talho ouvia-se o King, exceto nos dias religiosos em que era substituído pela transmissão da missa.
Charles, sempre foi muito católico. Espírito sisudo e compenetrado fazia tremer as crianças. Nunca ninguém o tinha visto sorrir. Atendia os clientes com um preciosismo inigualável. Não havia uma queixa sequer acerca da sua carne ou higiene do local. Esmerava-se por manter tudo impecável.
Aquele talho era estranho, agradável devido o brio mas com uma decoração sui generis. As paredes encontravam-se decoradas com o Sagrado Coração de Jesus, entre fitas coloridas, geralmente usadas nos santos populares.
A compaixão das imagens e alegria das fitas chocavam com o semblante sério de Charles.
-Mãe, eu tenho medo do homem do talho!
-Parvoíce, o Sr. Charles não faz mal nenhum!
Os pais tentavam apaziguar o espirito inquieto e temeroso das crianças mas no fundo também achavam o talhante estranho e bizarro. Entre os adultos corria o boato que ele era assim desde que a mulher havia falecido. Os mais velhos diziam que o seria desde a escola primária.
A calma da praça foi interrompida pelos risos de crianças que corriam entre as bancadas de peixe e da fruta.
Charles não saía de seu talho. Mantinha-se ocupado nos seus afazeres como se o mundo lá fora daquelas portas não existisse.
De repente, um rapazito, franzina e desajeitado entrou e disse com voz trémula:
-Queria um frango com cabeça preta!
Charles, parou de fazer o que o ocupava. Franziu o semblante, perante tal pedido estranho e perguntou:
-Menino, os frangos são vendidos depenados.
-Sim, mas eu queria um!
O rapazito transpirava e tremia.
-Já te disse que não tenho! Porque queres tal coisa?
-Não posso contar! – Respondeu com voz baixa, quase inaudível.
-Ora, então vai para casa! Os teus pais devem andar a tua procura!
-Não posso sair!
-Porquê?
-Eles batem-me!
Charles reparou que mesmo em frente ao seu talho estavam mais dois meninos de estatura maior que o que se encontrava junto a si.
-Diz-me rapaz! Foram eles que te mandaram vir aqui pedir isso?
-Sim!
-Porquê? Podes falar que eu não lhes digo nada!
-Eles dizem que o senhor faz feitiços! Que é bruxo!
De repente, uma gargalhada saiu dos lábios de Charles. Algo nunca antes visto. O rapazito assustou-se.
-Não me faça mal!
-Eu não te faço mal menino! Vamos é dar uma lição aos teus amigos. Vais entrar e sair pela porta das traseiras. Quando fores a sair dás um grito de horror. Vais direitinho para casa, está bem?
-Está bem! Muito obrigado Sr. Charles! Afinal até é “bacano”!
Nunca o tinham chamado assim. O rosto do talhante mudou. Afinal era “bacano” e não “caixa de óculos espinafrado” como o chamavam na escola.
O menino assim fez. O seu grito ouviu-se na praça inteira. Fazendo gelar o peixe fresco e arrepiar os pelos dos kiwis. Saiu. Contudo, não foi embora. Ficou ali a espera para ver o que o talhante iria fazer.
Os rapazes assustaram-se, correram e foram chamar um guarda.
-Sr. Guarda! Sr. Guarda! O homem do talho matou o nosso amigo!
O agente achou muito estranho a conversa e resolveu acompanhar as crianças aflitas.
- Sr. Charles, estes rapazes dizem que matou um amigo deles! O que se passa?
-Sr. Agente, não se passa nada. O menino veio aqui pediu um frango para a mãe que é minha cliente e foi-se embora.
O guarda dividido e instigado pela ideia que tinha do talhante:
-Vamos a casa do menino para ver se ele lá está! Se não estiver, o Sr. Charles terá que me acompanhar à esquadra para averiguarmos os pormenores. Entretanto, vou chamar um colega meu para ficar aqui consigo.
O menino franzino e temeroso que ouvia atrás das portas das traseiras dividia-se entre salvar o seu mais recente amigo talhante enfrentando os seus colegas e não fazer nada. Deixando-se ficar no seu canto à espera que tudo se resolvesse.
O outro agente chegou. O primeiro guarda preparava-se para sair.
De repente, algo mudou dentro do coração do menino. Surgiu uma necessidade de parar de se esconder e de fugir, uma vontade enorme de ser ele próprio. Abriu as portas e entrou.
-Não vão que eu estou aqui!
-Onde estavas? – Perguntou o primeiro agente a chegar.
-Eu estava lá fora. O Sr. Charles salvou-me de ser criticado pelos meus colegas por não ter coragem de lhe pedir um frango com cabeça preta.
Os outros rapazes ficaram ruborizados de vergonha.
-Vocês mentiram-me! Gozaram com o vosso colega! E agora? Vou falar com os vossos pais.
-Não é preciso, Sr. Agente! Deixe-os aqui comigo o resto da tarde. Tenho ali atrás uma tarefa para eles.
O talhante abriu a porta de uma arca frigorífica aonde estavam as galinhas já depenadas e ao lado vários sacos de penas.
-Vão-me ajudar a levar as penas todas para o lixo! Concorda!
-Ora ai está Sr. Charles! Acho muito bem! E eu vou ficar aqui por perto para garantir que eles o fazem!
O rapaz franzino ficou muito orgulhoso de si próprio e nunca mais deixou que o gozassem.

O talhante nunca mais foi o mesmo. As fitas dos santos populares e as imagens dos santos deixaram de aparecer. O King continuava a tocar mas sempre acompanhado por um sorriso ou assobio de Charles, o “bacano”.


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