Avançar para o conteúdo principal

Amizade de vidro

Bogas passava horas numa janela do primeiro andar algures num prédio de Lisboa. Durante o dia estava sempre sozinho em casa mas não ali naquele pedaço de parapeito. Tinha um amigo que o visitava sempre. Um pombo. Não se falavam porque o vidro os impedia mas ali ficavam horas a fazer companhia um ao outro. Tratava-se de uma relação de companheirismo no silêncio. Não era como duas pessoas que apanham todos os dias o mesmo autocarro sem nunca se falarem. Era mais do que isso. Olhavam-se olhos nos olhos e observavam as mesmas coisas com cumplicidade. Tinham as mesmas rotinas e sem se perceber como, parecia que tinham a mesma opinião sobre o que se passava lá fora.
O pombo não tinha medo do predador natural, não pela existência do vidro mas porque mantinham uma espécie de amizade.
Bogas, não sabia o que eram aves nem que na natureza eram adversários. Se calhar era uma relação baseada na insensatez de um e na ignorância do outro. Não era importante.
Certo dia o dono de Bogas esqueceu-se da janela aberta. Á hora do costume, Bogas espreguiçava-se e caminhava languidamente em direção ao parapeito. Saltou para cima da máquina de lavar roupa e com mais um esforço lá chegou ao local de encontro. Estava vento e seus bigodes esvoaçavam. Olhou para baixo e pensou como seria engraçado correr na relva e brincar com o seu amigo.
O pombo chegou e poisou nas cordas da roupa assim que viu a janela aberta. Algo dentro de si o fez recuar no voo.
Olhou para seu amigo com algum receio.
-Olá! – Referiu.
-Olá! Gostava de ir lá para baixo brincar contigo! Nunca fui à rua! Vens comigo? O pombo não sabia o que pensar. Gostava de seu amigo mas o seu instinto fazia-o tremer por dentro.
-Não sei! Não tens medo?
-Do quê? A ave ficou sem resposta. Ali não havia cães, carros nem passavam muitas pessoas. Metade de si queria correr com o seu amigo e outra metade fugir dali.
-Vamos lá! Podes ir no meu dorso!
O pombo lembrou-se de toda cumplicidade e voo para cima do dorso de seu amigo e gritou:
-Vamos brincar!
O gato encolheu as patas traseiras, ganhou balanço e saltou para a relva. Correu com todas as suas forças. Seu amigo agarrava-se para não cair. Nenhum teve medo, nenhum pensou.
Os outros pombos fugiram do jardim para cima das árvores e observaram a cena com um misto de pavor, espanto e sarcasmo, comentando entre eles que a ave estava doida ou se queria suicidar.
Aos amigos nada interessava. Sentiam-se livres e felizes.
Correram o dia todo até não conseguirem mais. A noite caiu:
- Fica cá fora comigo! – pediu o pombo.
 Bogas gostou muito da brincadeira e do sentimento de liberdade mas também sentia falta do seu dono, das suas brincadeiras e caricias a noite no sofá.
-Não posso! Tenho que voltar!
Sem aguardar mais nenhuma palavra Bogas saltou para a janela. Parou e olhou para seu amigo em silêncio. Ambos tinham um brilho no olhar e um semblante triste. Sabiam que no dia seguinte tudo voltaria ser igual mas também tinham consciência que a amizade que possuíam era mesmo a sério.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Felicidade

A Felicidade não se conquista, aprende-se!

O sonho do André

André tinha um sonho. Adorava brincar ao ar livre, nos jardins e parques da cidade. Gostava de saltar de pedra em pedra, como se estivesse a jogar na calçada portuguesa, mas, sempre que o fazia, sentia-se um bocadinho triste. E sabem o que o fazia sentir-se assim? O lixo espalhado pelo chão. André gostaria de ter uma vassoura mágica que varresse tudo ou uma borracha gigante que apagasse o lixo e um pincel para voltar a colorir de verde os jardins e de cinzento os passeios. Não conseguia perceber por que razão as pessoas deitavam lixo no chão quando havia caixotes espalhados pela cidade. Gostava de pensar que as pessoas não podiam ser tão descuidadas assim. Imaginava que existia um monstro do lixo que, ao tentar comer o lixo dos caixotes, deixava cair pelo chão pacotes de sumo, latas de cerveja e muitas outras coisas. Certo dia, na escola, a professora pediu a todos que desenhassem o que gostariam de ser quando fossem grandes e escrevessem um pequeno texto sobre isso como trabalho de ca...

Semelhanças

Aiii...começo a preocupar-me com algumas das semelhanças com os meus pais, estou a ficar com o maior defeito da família: o esquecimento!!! Roupa esquecida na máquina de lavar???? Que coisa, os genes, acabamos por ficar com uma mistura dos do pai e dos da mãe e com a idade começam a tornar-se mais evidentes.