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Trova enevoada


Há muito, muito tempo atrás, em meados do século XIV, vivia-se no nosso país um período muito conturbado. O rei D. Sebastião havia desaparecido na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Não havia descendentes e Portugal perdeu a sua independência ficando a ser governado pelo rei D. Filipe II de Espanha.
Em alturas difíceis o povo precisa de obter esperanças e agarrar-se a algo. Assim, naquela altura, criou-se a lenda que o rei D. Sebastião se encontrava escondido e apareceria de novo, num dia de nevoeiro.
A história que se segue é pura ficção. Trata-se apenas de uma viagem até a este período da história que segundo a minha opinião daria uma bela aventura a ser retratada num livro ou filme.
Algures em Trancoso, no início do Verão de 1978, nas prateleiras de um sapateiro, encontrava-se o poeta: Bota da Trova. Era conhecido assim por todos os chinelos, botas e outro tipo de calçado que entravam e saiam daquele estabelecimento. Todos levavam consigo uma trova criada pela Bota e espalhavam-na pelo reino.
Estas trovas eram declamadas aos donos humanos do calçado durante o sono. Era um feitiço mágico que a Bota possuía.
Alguns dias depois da Batalha de Alcácer-Quibir, chegou ao reino a notícia do desaparecimento em batalha do Rei e a desgraça de ausência de descendência real. O povo desorientado temia pela perda de autonomia para Espanha.
No sapateiro, a Bota da Trova, ouvia os recém-chegados:
- Desapareceu! Eu estava envolto em pó fino a que eles chamam de areia. Quase não via aonde andava e quando olhei para o lado já não os vi. Não estava entre os deitados, cujos donos haviam sido feridos ou mortos nem nos dos humanos que andavam a tombear pelo campo de batalha.
- Foi horrível! Uns gritavam pelas dores, outros à procura D` Ele.
- O que será do povo agora?
A Bota da Trova, inspirada e atordoada por aquela profunda inquietação e desespero começou a trotear:
- Rei Novo, forte sobreviveu!
Pelas dunas se escapou.
Num oásis do deserto se escondeu!
Os pares de calçado foram interrompidos pela rima.
- Rei Novo, forte sobreviveu!
Pelas dunas se escapou.
Num oásis do deserto se escondeu!
Esta rima entrava no ouvido e os restantes pares de calçado levaram consigo e espalharam pelo reino a mensagem aos seus donos.
Passados uns dias, outros chinelos e sapatos lamuriavam-se:
-Estou cansado de andar! O meu amo anda de um lado para o outro, junto dos nobres à procura de um novo rei. Anda tão distraído que deu um pontapé numa pedra e fez-me um rasgo – afirmava uma bota.
-E eu? O meu dono recebe tantas visitas na sua casa que se ajoelham a seus pés e me fazem festas. Tanto roçaram que me romperam – referia também um sapato.
Largados num canto estavam uns chinelos com as cordas partidas à espera de que o seu dono trouxesse um coelho para trocar com o sapateiro pelo seu arranjo.
-As minhas cordas romperam pelas merendas, bebidas e jantares que o dono da casa aonde o meu amigo trabalha dá.
-Amigo?! – Responderam os outros em coro.
-Sim! Amigo.
-As cordas rebentadas atordoaram-te o juízo! Os donos não são amigos! São donos!
-Não! Os vossos são donos porque vos usam como adereço. Calçam-vos quando precisam e trocam-vos quando querem. O meu amigo usa-me a vida toda porque precisa e porque não se importa de andar sempre com os mesmos.
-Que tontice! Espero é que se encontre um novo Rei depressa. Já não aguentamos mais!
A Bota da Trova, sempre muito atenta, trauteou:
- Rei Novo, forte viverá!
Numa manhã de nevoeiro regressará!
O restante calçado parou para ouvir:
-Viva! Viva! Ao descanso regressarei! – Responderam as botas.
-Viva! Viva! À vida sem vénias, passarei! – Afirmaram os sapatos.
Todos saíram no dia seguinte exceto os chinelos. O seu dono não os tinha vindo buscar.
O calçado espalhou a lenda pelo reino do regresso do Rei e aquele par de chanatos ali estava dia após dia.
O rei não regressava e seu dono também não.
Passados uns dias chegaram uns novos sapatos estranhos e com uma língua desconhecida:
-Olé! Olé! – Repetiam sem parar.
A Bota da Trova achava piada aos novos clientes:
-Olé! Olé! Vira sai,
Flamenco vem,
Vira foi e ninguém o trai.
Os sapatos estrangeiros nada percebiam e ignoravam as palavras. Apenas diziam:
-Olé! Olé!
No dia seguinte, saíram e não levaram nada consigo. O feitiço das trovas já não resultava. No entanto, ali estava o chinelo largado.
O tempo passou e não entravam sapatos novos para arranjar. A Bota da Trova ali ficou junto ao chinelo abandonado em silêncio.
-Vamos ter que fechar o sapateiro! Vou para o Norte, para o campo. Já ninguém arranja sapatos. Os que têm dinheiro deitam-nos fora e compram novos e os que não têm andam descalços – afirmou o sapateiro antes de fechar a loja.
A Bota da Trova ali ficou em silêncio, na casa fechada. Nos dias de nevoeiro olhava pela janela à procura de alguém. Alguém que traria justiça, alguém que segurava a liberdade e que alimentava a alma. Nunca veio. 

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