Avançar para o conteúdo principal

Eu não, claro!

Chegaram os dias de Outono à floresta encantada. As primeiras chuvas humedeceram as terras. O vento sacudia os ramos, fazendo cair as folhas já secas e partir os galhos mais frágeis.
Um tapete de tons dourados e avermelhados formava-se pelo chão. Era como se várias artesãs bordassem cada pedaço com todo o carinho das mãos mais experientes.
Esse manto aveludado ia criando condições para o surgimento de uma variedade infindável de fungos das todas as cores e feitios.
Junto ao tronco de um carvalho nasceu um cogumelo vermelho de pintas brancas de chapéu largo.
Era impossível passar por ele sem se aperceber da sua existência e beleza. A sua cor viva ressaltava daqueles tons castanhos alaranjados que abundavam na floresta naquela altura do ano.
À sua volta nasceram mais fungos, uns brancos, outros castanhos, outros amarelados mas nenhum atingia aquela vivacidade.
O cogumelo cresceu assim, extremamente vaidoso e na sua mente o mundo girava a sua volta.
O seu egocentrismo era tão marcante e acentuado que lhe puseram o nome de Umbigo Salpicado.
O tempo naquele Outono estava instável e muito rigoroso.
Certa noite arrefeceu tanto que nevou de madrugada. A floresta acordou coberta por um manto branco.
Umbigo Salpicado, assim que abriu os olhos observou que tudo a sua volta parecia igual:
-Ah, agora é que sou mesmo único. Está tudo branco! A minha cor avermelhada deve-se ver a km de distância.
Sempre tão concentrado em ser diferente e confiante da sua distinção nem pensou que se tinha nevado em todo o lado ele também estaria branco.
Ali perto andava um esquilo à procura das nozes que havia enterrado há alguns dias atrás.
Escavava ali e acolá meio desorientado, tentando recorrer ao olfato para achar a sua comida.
Tanto andou que se aproximou de Umbigo Saltitante. Estava cada vez mais perto. O gelo deturpava a sua visão e desviava os seus sentidos. Já tinha escavado vários cogumelos sem querer.
-Oh, desculpe! Não queria magoa-lo!
-Ups! Enganei-me!
Ia dizendo cada vez que acontecia. Algumas vezes enterrava-os novamente mas acabava por arrancar sem querer algumas partes do corpo.
Estava com fome e continuava a aproximar-se de Umbigo Salpicado.
O cogumelo colorido, pensava:
-Ah, de certeza que ele se vai desviar. Qualquer um me vê, claro!
O esquilo lá continuou. A cerca de um palmo de terra Umbigo gritou:
-Ei! És daltónico? Não me vês?
O animal olhou em volta e viu tudo branco.
-Estás a ouvir!
-Quem fala? Onde estás?
-Sou eu!
-Eu quem?
-Desculpa! É impossível não saberes quem sou e me vires! Deves ser cego! Sou eu!
-Quem fala?
-Eu, o mais belo da floresta!
-Não vejo nada!
-Estás a brincar comigo?
-Está tudo coberto de neve! Vou procurar-te!
O esquilo avançou e ao agitar a pata espetou algumas das suas unhas no chapéu do Umbigo.
-Ai! Magoaste-me!
-Desculpa, não percebi que eras tu!
-Como é possível? Eu sou vermelho!
-Sim! És! Mas estás também coberto de neve! Olha!
O esquilo levanta a pata aonde segurava um pedaço do chapéu vermelho de Umbigo, coberto de neve.
O cogumelo, cabisbaixo e dorido sussurrou:
-Não sabia! Não pensei que eu também estivesse branco!
-Porquê? Quando a neve cai, cai em todo o lado- Resumiu o esquilo.
Concentrado na sua própria existência e unicidade por vezes as pessoas esquecem-se que há coisas que quando acontecem, acontecem a todos.


PS.: O cogumelo vermelho e branco é  "Amanita muscaria, conhecido como agário-das-moscas ou mata-moscas é um fungo basidiomiceto natural de regiões com clima boreal ou temperado do hemisfério norte." in Wikipédia



Comentários

Mensagens populares deste blogue

Felicidade

A Felicidade não se conquista, aprende-se!

Impossível amor eterno

O mundo tinha acabado de ser criado e apenas havia uma aldeia no topo das montanhas. Existiam três famílias, uma dedicava-se à pesca, outra à caça e outra à recolha de frutos. Todos realizavam as suas tarefas para o bem da comunidade e trocavam o resultado das suas actividades entre si. Os colectores eram amados por todos mas os pescadores e os caçadores odiavam-se entre si. Segundo eles, uma pessoa podia viver só comendo peixe ou só carne pelo que, não fazia sentido existirem as duas profissões. Um dia, Sol, filho dos caçadores apaixonou-se pela filha dos pescadores, Lua. Esta relação durou pouco tempo até que fosse descoberta e repudiada pelas famílias. Nos meios pequenos não existem segredos. O ódio foi tanto que decidiram afasta-los para sempre. O Sol passou a viver durante metade do dia e a Lua a outra metade, ficando o resto do tempo fechados numa gruta profunda das montanhas. Assim, os caçadores passaram apenas a procurar animais durante o período que o seu filho era liberto, a ...

Aos que me acompanham

Ouço todo o mundo dizer que “ o mundo dá muitas voltas”, que “ o que hoje tens como certo, amanhã pode não o ser”. Questiono-me agora acerca das pessoas que estão sempre ao teu lado, incondicionalmente. Os nossos pais, por exemplo, discutimos, brigamos, queremos muitas vezes que eles nos deixem viver a nossa vida. Contudo quando, mais uma vez “batemos com a cabeça” regressamos e eles tem sempre os braços abertos para nos receber. Os verdadeiros amigos também estão neste grupo. Aqueles que já nos viram fazer figuras ridiculas e nem sequer ligaram ao assunto. Continuam ao nosso lado. Estão dispostos a ouvirem-nos ás 3h da manhã porque, mais uma vez, a vida nos pregou uma partida. É claro, que, um dia, não por vontade própria, podem-nos deixar mas, nessa altura já tem um lugar tão grande no nosso coração que os torna Eternos .